sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Relativismo cultural (a partir de James Rachels, Elementos de filosofia moral)



O relativismo cultural é a teoria que defende, com base nas diferenças culturais existentes, que não há verdades morais objectivas e universais e que os diferentes códigos morais são igualmente legítimos. Uma determinada moral vale para uma determinada sociedade de uma determinada época, e não é lícito avaliar os costumes de um povo com base nos valores ou princípios morais de outro.
Todos sabemos que existem diferentes culturas com diferentes códigos morais. Cada uma dessas culturas olha para os costumes das outras com estranheza e, por vezes, com repúdio: as práticas destas não só são estranhas como chegam a ser inaceitáveis. As pessoas de outras culturas fazem as coisas de formas incorrectas.
            O problema é que as pessoas de culturas diferentes da nossa dizem o mesmo a respeito de nós. James Rachels fala de um caso em que o Rei Dário, da Pérsia, confrontou dois povos, gregos e calatinos, com os hábitos funerários uns dos outros. Aos gregos repugnava a prática funerária, dos catalinos, de comer os mortos. Aos calatinos repugnava o hábito de os queimar na pira funerária, como os gregos faziam. Confrontando-os, Dário parece ter-lhes dado uma lição de tolerância.
            Os mesmos problemas com diferenças de valores, de princípios morais ou de costumes acontece no mundo contemporâneo. Continua a haver diferenças entre culturas e a ser difícil apresentar razões objectivas para dizer que um determinado código moral é melhor ou pior que outro …Ou será que não é bem assim? Um outro caso apresentado por Rachels é o do infanticídio entre os povos esquimós, descrito nas primeiras décadas do Século XX. Muitos de nós horrorizamo-nos com a prática do infanticídio e reconhecemos que o sistema de valores dos esquimós, apesar de ser muito diferentes dos nossos, está errado. Por outro lado, existe uma linha de pensamento baseada em estudos antropológicos e sociológicos que nos diz que cada povo tem a sua cultura e que é legítimo a esse povo dizer, para si, o que é moralmente certo ou errado. Desta forma, estamos a avançar para uma derivação do relativismo cultural, que estabelece a tradição como fundamento da moral: um determinado código moral é bom porque é aceite e praticado por uma comunidade de pessoas. O bem e o mal, dentro desse grupo, são definidos por um padrão cultural convencionado.

Diferentes culturas têm diferentes códigos morais.
Logo, não há verdades morais universais.

i) Análise lógica: Este é o argumento básico do relativismo cultural, tal como foi apresentado até agora. Muitos de nós o aceitarão como um bom argumento. Na verdade não o é, porque a conclusão não se retira da premissa. Podemos imaginar um caso em que a premissa é verdadeira e a conclusão é falsa. Por outras palavras, o facto de haver duas teorias morais opostas não invalida que uma delas, ou uma terceira, possa estar certa (o facto de haver quem acredite que a Terra é plana não significa que esta teoria valha tanto como aquela que demonstra que a Terra é +/- esférica – cf. P. 39).
Na verdade, o argumento é composto por um conjunto de afirmações diferentes e sem grande ligação entre si: 1.º, sociedades diferentes têm códigos morais diferentes; 2.º, o código moral de uma sociedade determina o que é correcto no seio dessa sociedade; 3.º, não há qualquer padrão objectivo que se possa usar para ajuizar um código moral como melhor do que outro; 4.º, o código da nossa sociedade não tem um estatuto especial; 5.º, não há verdades universais em ética; 6.º, não é lícito julgarmos a conduta ou os códigos morais de outros povos. Uma análise cuidada destas afirmação revela que as duas primeiras são verdadeiras, mas que daí não se deduz a verdade das seguintes. Estas são, aliás, muito discutíveis, ou mesmo contraditórias com a própria essência da moral.
Além disso, a afirmação de que culturas diferentes, sendo incomparáveis, valem o mesmo, é uma avaliação categórica da sua moral. Isso é uma contradição. Pela análise lógica mostra-se, assim, que o argumento não é válido.
ii) Análise das consequências: A tese de que a cultura é o padrão da moralidade é igualmente discutível e cria mais pressão para abandonarmos o relativismo cultural. Ela entra em conflito com os nossos interesses e crenças morais mais básicos: a) contraria a ideia de progresso moral, pelo que reformas sociais como as lutas pelos direitos das mulheres ou contra a escravatura estariam sempre erradas, porque contrariariam a moral estabelecida; b) seria ilegítimo condenar comportamentos que nos parecem naturalmente maus, como o extermínio em massa de judeus, ou a própria escravatura. Assim, a tese relativista contraria o que consideramos serem evidências morais: a nossa convicção de que algumas coisas estão erradas é muito profunda; c) deixaria de fazer sentido falar de tolerância, porque vigorariam sempre os costumes do grupo e todos os outros estariam errados; d) a moral perderia sempre o seu significado mais profundo, o qual consiste em determinar racional e universalmente as formas correctas de conduta. O pensamento moral (moral reasoning) consiste em apresentar justificações (tão sólidas e imparciais quanto o possível) para as nossas opções, normas, princípios e valores morais. O que dá valor e fundamento à moral é a sua base racional. A racionalização da moral é o meio mais eficaz para encontrarmos em conjunto princípios imparciais pelos quais nos possamos orientar conjuntamente.
iii) Falsificação da premissa principal do relativismo cultural: Além do que foi apresentado antes, Rachels afirma que as diferenças acerca de valores ou princípios morais fundamentais são aparentes. Por detrás das práticas ou costumes diferentes, os mesmos valores parecem aparecer nas diferentes culturas: o respeito, o dever de não mentir, etc. O desrespeito por esses princípios fundamentais implica a perda de qualidade de vida e a degradação dos laços de confiança e de cooperação que mantêm a sociedade unida. Pode também levar ao isolamento e morte do indivíduo. As sociedades que não cultivam os valores essenciais tendem a extinguir-se. É isso que os torna necessários à vida em sociedade e lhes dá uma espécie objectividade material.
Os esquimós praticavam o infanticídio; mas faziam-no apenas quando não tinham outras opções. Sempre que isso era possível, as crianças eram mantidas, por vezes através da adopção por algum familiar. Os calatinos comiam os seus mortos mas, tal como os gregos faziam cremando os seus, faziam-no para os honrar com uma cerimónia fúnebre decente; porventura, para os conservarem para sempre (e literalmente!) no seu coração.

Tarefas:

1.  Distinga valores, princípios e normas.
2.  Resuma os argumentos do relativismo cultural.
3.  Resuma as falhas lógicas da teoria do relativismo cultural.
4.  Qual das consequências do relativismo cultural lhe parece mais grave? Justifique.
5.  Justifique a tese de que há valores/princípios universais.
6.  Explique a afirmação de que aquilo que dá valor à moral é o pensamento racional.

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